Virtude da Coragem

Esp. Marcelo Maciel

A virtude da coragem como ferramenta de florescimento em tempo de adversidade

Frequentemente, ouvimos que a crise é o grande momento da oportunidade. As reuniões motivacionais estão repletas de casos de empreendedorismo e sucesso. As campanhas publicitárias, quase sempre, associam atletas de alta performance às histórias de superação e resiliência. Além disso, as mídias sociais estão lotadas de “pseudo-experts” com receitas de sucesso para todos os gostos e desgostos.  Porém, a crise mundial causada pela pandemia da Covid-19 revelao quão desafiador é crescer na adversidade. O contexto atualmostra-se impetuoso e capaz de desintegrar qualquer polianismo fantasioso,pois as inúmeras tensões e incertezas a respeito do que há de vir são gatilhossuper sensíveis para uma enxurrada de preocupações, medos, angústias, falta de esperançae, até mesmo, desespero.

Entretanto, o objetivo deste artigo não é ser mais um porta voz do caos. Mas, pelo contrário, almeja-se trazer esperança e um auxílio fundamental neste momento sem precedentes, particularmente, com relaçãoaos desafios pós-pandemia. Um dos principais benefícios da Psicologia Positiva é oferecer recursos práticos e cientificamente comprovados a respeito dos elementos que propiciam o florescimento humano. No vasto campo de estudo da Psicologia Positiva, Martin Selligman e Christopher Peterson lideraram uma majestosa pesquisa sobre os comportamentos apreciados nas mais diversas culturas. Cientistas visitaram povos ao redor do globo, do Oriente ao Ocidente, de Norte a Sul, desde os locais mais populares aos mais remotos, pesquisaram entre os pensadores do passado e os atuais, e identificaram seis virtudes ubiquamente apreciadas, a saber: a sabedoria, a coragem, a humanidade, a justiça, a temperança e a transcendência. Estas, por sua vez, são subdivididas em 24 forças de caráter, as quais são caminhos que levam ao desenvolvimento do comportamento virtuoso.As forças de caráter são aspectos que compõem cada virtude, são elementos intrinsicamente relacionados que formam um todo, a virtude.

Faz-se necessário, ainda, frisar uma boa notícia que pode passar despercebida:pelo fato de a virtude ser um hábito bom, ou seja, um comportamento deliberado, qualquer uma das 24 forças de caráter pode e deve ser desenvolvida, afim de promover o bem-estar individual e comunitário. O uso das forças de caráter está relacionado aos cinco elementos fundamentais da teoria do bem-estar que visa o florescimento humano.Sendo assim, o uso das forças de caráter propicia o desenvolvimentode emoções positivas, o engajamento nas mais diversas atividades, os relacionamentos positivos, o propósito de vida e, ainda, as realizaçõesde tarefas e cumprimento de metas.Portanto, o uso das forças de caráter contém em si umacapacidade potenciadora da condição humana. Dessa forma, em face aos desafios sem precedentes, ocasionados pelo coronavírus, lançar mão dessa grande caixa de ferramentas é um meio salutar para enfrentar e crescer na atual conjuntura. O presente artigo abordará, particularmente, a virtude da coragem e as quatro forças de caráter que a compõem: a bravura, a perseverança, a integridade e a vitalidade.

A virtude da coragem tem na vontade a sua principal faculdade, pois busca nela a motivação necessária para alcançar os objetivos almejados, apesar dos desafios interiores, como os pensamentos negativos e o desequilíbrio emocional; e exteriores, como a presente situação adversa ou uma pessoa que surja em oposição à meta estipulada. Bebendo da tradição filosófica, a coragem é considerada uma virtude corretiva, uma vez que visa ajustar dificuldades inerentes à situação humana, que pode ser disfuncional, especialmente quando a pessoa está fora de um ambiente considerado seguro.

Por fim, antes de abordar as forças relacionadas à virtude da coragem, é relevante destacar que as forças de caráter não são usadas isoladamente e muito menos devem ser interpretadas fora de contexto. Quando um bombeiro utiliza adequadamente a força da bravura para entrar num prédio em chamas e resgatar um bebê, tal ato é precedido por outras forças de caráter ligadas à sabedoria, como a perspectiva para analisar a situação sob diferentes aspectos, e a força do julgamento para eleger o meio mais adequado para realizar o salvamento. Além disso, a complementariedade das forças de caráter não diz respeito somente ao ato individual, mas também ao coletivo. Para entrar no prédio, o bravo soldado conta com a ajuda dos demais membros da equipe que, por sua vez, colocam suas forças à disposição para juntos atingirem o nobre objetivo de arriscar a própria vida pela de um desconhecido.

As forças de caráter que compõem a coragem (bravura, perseverança, integridade e vitalidade) serão apresentadas sob três aspectos. Primeiramente, será feita uma breve apresentação da força, afim de elucidar o que ela representa. Em seguida, serão apresentados alguns argumentos com o intuito de esclarecer por que tal força é relevante. E, por fim, algumas perguntas servirão como meio de reflexão pessoal em vista da conscientização e prática da força. Por se tratar de um artigo e não de uma intervenção, tais perguntas servirão como um compasso para ajudar no desenvolvimento inicial. Cada indivíduo, no seu contexto situacional, possuindo uma força de assinatura distinta, ou seja, as forças utilizadas com mais frequência, deve ser considerado singularmente e assistido por um especialista na área para que se alcance o resultado esperado.

A força de caráter da bravura

O que é a força de caráter da bravura? 

O exemplo do bombeiro, utilizado previamente, oferece o contexto para explorar um pouco mais essa força, que consiste em encarar os desafios, ameaças, dificuldades e riscos. É o ato de agir em vista do bem almejado, encarando as adversidades, apesar do medo. O medo é um elemento que está intimamente relacionado à bravura e deve ser utilizado de maneira funcional. É comum pensar que a bravura é a ausência do medo. Muito pelo contrário, ele é o alerta natural para as ameaças presentes e futuras. A bravura é capaz de trazer de volta os pés do indivíduo ao estável solo da realidade e eliminar eventuais fantasias. Evidentemente, quando o medo atinge um nível disfuncional, pode ter o efeito oposto, pois a pessoa teme tanto a possível ameaça que entra numa espiral descendente de pensamentos e sentimentos negativos, resultando na paralisação em face à adversidade. E as consequências podem ganhar proporções catastróficas.

A bravura pode ocorrer em ao menos três formas. A primeira delas é a física, que acontece quando a adversidade presente envolve dano ao corpo do indivíduo, como no caso do bombeiro citado anteriormente ou tantas pessoas que, devido à pandemia, perderam seus empregos, moradias e estão com a saúde comprometida. 

A bravura toma também uma forma psicológica. Esta se verifica quando é necessário encarar a própria condição mental, emocional ou qualquer situação desencadeada por elementos desta ordem. O que não faltam são exemplos trazidos pela atual conjuntura. O aumento vertiginoso da busca por profissionais de saúde mental e a lamentável alta no número de suicídios são argumentos suficientes para ressaltar a importância dessa ferramenta no desenvolvimento do bem-estar. A terceira forma de bravura é a moral, que se manifesta diante de uma injustiça. É a voz que, apesar do medo e das possíveis consequências, se posiciona em favor do que é certo e em auxílio de um menos favorecido. Tal ato verifica-se quando, por exemplo, numa reunião, alguém se manifesta para denunciar uma situação injusta que pode trazer danos futuros para um membro da equipe, para todo o time, assim como para a própria empresa e os clientes.

Por que exercitar a força da bravura? Pesquisas evidenciam os seguintes benefícios ligados ao uso dessa força: as pessoas tornam-se mais tolerantes às vulnerabilidades, que são parte dos processos de mudança, colaborando, dessa forma, com o desenvolvimento de relacionamentos positivos. A bravura está relacionada ao aumento da resiliência e às outras formas de habilidades sociais. Tal força permite, ainda, iniciativas de combate a situações de abuso e injustiça.

Como desenvolver a força da bravura? O primeiro passo é a identificação e conscientização. As perguntas a seguir o ajudarão nesse processo inicial.  Como a sua bravura é expressa com mais frequência? Na forma física, psicológica ou moral? Quais foram os casos em que o uso da bravura o levou a um impacto positivo? Como você costuma equilibrar a força da bravura, de maneira que ela não o leve à situações de risco desnecessário ou à omissão?

A força de caráter da perseverança

A força de caráter da perseverança consiste no ato de persistir até a conquista da meta estabelecida, apesar das adversidades, dos desencorajamentos, das decepções, das falhas e das mudanças necessárias ao longo do caminho. Perseverar significa trabalhar arduamente para terminar o que começou. Pessoas com alto nível de perseverança encontram, na realização de seus objetivos e na superação das adversidades, o seu prazer. A retomada das atividades pós-pandemia é um desafio para todos. Mais do que nunca, é sumamente importante utilizar suas forças para encontrar novos caminhos e oportunidades quando todos os planejamentos foram aniquilados. Todos os profissionais e empresários precisam se reinventar imediatamente. Desistir pode ser a opção mais nociva possível. Posto isso, é fundamental esclarecer quando a perseverança pode tornar-se disfuncional, seja tanto pelo excesso quanto pela ausência. Primeiramente, perseverança não equivale à obsessão. A perseverança tem como propósito o fim e os meios devidos para alcançá-lo, não a obstinação pelo fim através de meios inapropriados. Evidentemente, insistir compulsivamente num meio inadequado para atingir uma determinada meta é também disfuncional. Por outro lado, a ausência da perseverança caracteriza a pusilanimidade. Neste caso, por menor que seja a adversidade, a pessoa sucumbe pela falta de ânimo, firmeza e decisão.

Mais uma vez, vale ressaltar a importância de utilizar outras forças para balancear e corrigir usos disfuncionais. A autorregulação, a prudência e a integridade são verdadeiras companheiras em períodos de adversidade, tanto para ajudar a regular o excesso como a falta de perseverança. Quando essa força está ausente, o indivíduo emana sentimentos de desamparo e falta de esperança, dois perigosos ingredientes para a depressão, por exemplo. O ato de prosseguir decididamente e superar os eventuais obstáculos ressaltam dois elementos críticos em processos prolongados: o esforço e o tempo. Estes fatores de risco devem ser observados com atenção, não apenas para prevenir falhas, mas a fim de otimizar resultados positivos. Lembre-se de que o foco da Psicologia Positiva não está em apenas evitar o erro, mas proporcionar um estado de vida ótimo.

Quais os benefícios de exercitar a força da perseverança? Pesquisas apontam que a perseverança contribui diretamente para o desenvolvimento de habilidades e talentos, promovendo, assim, o aumento de recursos para futuros desafios. Está ligada também ao desenvolvimento da autoestima e da autoconfiança, levando ao aumento de crenças fortalecedoras que auxiliam em diversas áreas da vida. A perseverança ainda está associada aos relacionamentos positivos, uma vez que tais pessoas são consideradas confiáveis.

Como, então, desenvolvê-la? Novamente, comece pela identificação e conscientização da força que deseja trabalhar. As perguntas a seguir serão um auxílio – um primeiro passo: o que alimenta a perseverança? O que os seus casos de perseverança anteriores o ensinam sobre os seus recursos internos e externos? Há algum hábito ou pensamento que bloqueia a sua perseverança? Quais são os recursos e pessoas que o auxiliam nos momentos de dificuldade? 

A força de caráter da integridade

Esta força, também conhecida como honestidade, ressalta a autenticidade do indivíduo no relacionamento consigo mesmo e com os outros, tendo em vista seus valores e a responsabilidade pelos seus atos. A integridade faz com que a pessoa pense, diga e aja em consonância com suas crenças centrais. Deste modo, em momentos críticos, tal como quando o indivíduo precisa escolher entre a solução fácil ou a alternativa árdua, alinhada com seus valores, que a virtude da honestidade demonstra toda a sua força.No contexto atual, em que as taxas de desemprego crescem exponencialmente, a virtude da integridade é crucial. Um exemplo é quando o funcionário responsável pelas compras de um hospital se recusa a assinar recibos com valores adulterados, mesmo sabendo que tal decisão custará seu emprego.

Entretanto, como qualquer outra força, a honestidade pode perder o equilíbrio e tornar-se disfuncional. Por se tratar de uma força intimamente ligada a valores que guiam decisões e relacionamentos, sua falta gera uma volatilidade moral. Na ausência de valores claros e próprios, o sujeito opta pelo que é mais vantajoso para si, tornando-se indiferente às consequências de suas ações e como estas podem prejudicar os demais. Por outro lado, valores excessivamente rígidos e desconexos da realidade dão origem a um comportamento moralista e intransigente. O indivíduo transforma-se, ao mesmo tempo,na medida, no juízo e na palmatória do mundo. Outras forças, como a perspectiva, a bondade e a justiça, apresentam grande correlação com a honestidade e podem servir tanto para regular quanto para potencializar os efeitos da integridade.

Quais são as vantagens de exercitar a força da integridade? As pesquisas indicam que pessoas com alta integridade apresentam maior assertividade em relação às suas próprias competências, motivações e objetivos. O elevado grau de responsabilidade por suas ações gera um maior senso de controle sobre a própria vida. A honestidade também está associada aos relacionamentos positivos, uma vez que tais pessoas são consideradas confiáveis e estáveis.

Para desenvolver a força da integridade, mais uma vez, comece pela identificação e conscientização da força no seu contexto de vida. Reflita sobre as perguntas a seguir: quanto você honra os seus compromissos pessoais e profissionais? Como você costuma reagir quando algo contradiz seus valores centrais? Quando comete um erro, você tem dificuldade de assumir a culpa e a responsabilidade pelas consequências? Como você costuma dar feedback a respeito do comportamento das pessoas?

A força de caráter da vitalidade

A força de caráter da vitalidade consiste no entusiasmo e na energia pela vida em geral, mas também pelo modo como a pessoa responde às inúmeras situações do cotidiano, como o trabalho, por exemplo. Esta força está intimamente ligada ao otimismo, ao vigor e à energia utilizada na realização de tarefas. Por isso, é importante ressaltar que a vitalidade não expressa somente um fator de produtividade individual, mas tal força funciona ainda como um catalizador e multiplicador de energia para aqueles que estão ao redor. Quando bem utilizado, seu efeito é contagiante.

Dessa forma, num contexto de incertezas e contrariedades, como o atual, a força da vitalidade ganha relevância, especialmente por refletir tanto o vigor físico quanto o mental. Sob o aspecto físico, a pessoa está saudável e cheia de vigor. Do ponto de vista psicológico, o indivíduo experimenta um senso de sentido e propósito de vida, ao invés de se sentir desconectado, confuso e sem rumo. Assim, num sentido mais profundo, a força da vitalidade refere-se à potência de estar vivo e ser um agente transformador no mundo.

Evidentemente, a força da vitalidade pode tornar-se disfuncional. Quando ela está ausente, no nível físico, o sedentarismo e a falta de entusiasmo para agir são as principais características.  Muitas vezes, essa situação decorre de um estado psicológico desfavorável, como a falta de interesse, o tédio ou, até mesmo, a depressão. Da mesma forma, quando a força da vitalidade está em alta, a pessoa é capaz de emanar positividade e atrair outros a si; quando ausente, o indivíduo fica vulnerável aos ambientes e relacionamentos tóxicos. Sendo assim, é importante monitorar como o ambiente e as pessoas influenciam o seu estado de ânimo. Por fim, a vitalidade tem a potência otimizada quando combinada com outras forças de caráter, particularmente as forças de assinatura, constituídas pelas suas principais forças de caráter, por serem utilizadas com mais frequência.

Pesquisas apontam que a vitalidade é uma das forças mais ligadas à felicidade e alguns de seus elementos, como o prazer, o engajamento e o sentido da vida. Estas pessoas tendem a ver o trabalho como um chamado. A vitalidade está, ainda, ligada à força de caráter da esperança, o que amplia o entusiasmo pela situação presente com a expectativa de um futuro melhor. Dessa forma, a presença da força da vitalidade atrai pessoas e promove relacionamentos significativos.

Novamente, o primeiro passo para desenvolver uma força de caráter é a identificação e conscientização da força na sua vivência. As perguntas a seguir prestarão um auxílio nesse processo inicial: quais pessoas, lugares e atividades afetam a sua vitalidade positivamente? Quais têm o efeito oposto? Como a vitalidade contribui para as suas realizações? Como você pode utilizá-la nos desafios atuais?

Uma vez apresentada a virtude da coragem e as forças de caráter que a compõem, é preciso acrescentar ao menos um elemento à frase que iniciou este texto. Sim, a crise é o grande momento da oportunidade, mas apenas para aqueles que estão preparados ou, ao menos, para aqueles que estão dispostos a agir de maneira positiva. Evidentemente, o uso das forças de caráter constitui um recurso eficiente na atual conjuntura e na vida como um todo, mas não é o único. A maturidade está em entender como cada área da Psicologia Positiva se integra a fim de promover o florescimento individual e coletivo. A adversidade é a ocasião perfeita para o protagonismo do herói que há em você. O mundo azul conta contigo.

Quer saber mais sobre as forças de caráter e, principalmente, descobrir quais são aquelas que podem ajudá-lo a florescer em tempos de adversidade? Então, acesse o link do VIA InstituteonCharacter, https://www.viacharacter.org/, e realize o teste gratuito, disponível em dezenas de idiomas, inclusive em português. Abaixo segue a referência bibliográfica para quem desejar aprofundar o conhecimento e desenvolvimento das forças de caráter.

 

REFERÊNCIAS

 

PETERSON, C., & SELIGMAN, M. E. P. Character strengths and virtues: a handbook and classification. Washington, DC: American Psychological Association, 2004.

NIEMIEC, Ryan M.; MCGRATH, Robert E. The power of character strengths: Appreciate and ignite your positive personality. VIA Institute on Character, 2019.

NIEMIEC, Ryan M. Character strenghts interventions: A field guide for practitioners. HogrefePublishing, 2017.

 

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